quarta-feira, 16 de junho de 2010

A UNIVERSIDADE MEDIEVAL


Iluminura do séc. XV mostrando uma cena de aula na Universidade de Bolonha.



Eraldo Luis Pagani Gasparini*









A Universidade Medieval tem seu início por volta do século XII, as primeiras instituídas foram as de Bolonha, Paris e Oxford (TRINDADE, 1999, p. 6). Dentro da perspectiva da Idade Média e das pessoas daquele período a Universidade Medieval é um local sagrado, é um lugar marcado pela sacralidade, monges, clérigos, sacerdotes ali se reúnem para transmitirem e produzirem os saberes. A Teologia é a maestrina que rege todos os conhecimentos e sem ela nada se produz, é um período na Europa em que a visão das pessoas está centrada em Deus e seu o Verbo, do qual “nada do que foi feito se fez” (Evangelho de João 1:3) e, por conseguinte nada poderia ser feito sem Ele. O sagrado esta por toda à parte no sino anunciando o alvorecer ou à tarde na ave-maria, no calendário marcando as festas dos dias santos, no trabalho com a terra, no brasão dos nobres. Os seus símbolos estão espalhados por toda a parte, na choupana do camponês, na casa do citadino, no castelo do nobre, no hábito dos monges e das freiras, nos adornos da donzela e da matrona, dos barões, duques e príncipes ou na coroa dos imperadores.

[...] surgiu aquele período de nossa história batizado como Idade Média. Não conhecemos nenhuma época que lhe possa ser comparada. Porque ali os símbolos do sagrado adquiriram uma densidade, uma concretude e uma onipresença que faziam com que o mundo invisível estivesse mais próximo e fosse mais sentido que as próprias realidades materiais. Nada acontecia que não fosse pelo poder do sagrado, e todos sabiam que as coisas do tempo estão iluminadas pelo esplendor e pelo terror da eternidade. Não é por acidente que toda a sua arte seja dedicada às coisas sagradas e que nela a natureza não apareça nunca tal como nossos olhos a vêem. Os anjos descem à terra, os céus aparecem ligados ao mundo, enquanto Deus preside a todas as coisas do topo de sua altura sublime (ALVES, 1981, p. 39-40).
O sagrado a tudo permeia e invade até mesmo os recantos da Universidade. E por isso a Universidade é parte integrante dessa sociedade, atendendo as suas necessidades e aspirações, ora participando das mudanças, ora fomentando elas. Numa época marcada pelo sagrado os Magísters procuravam responder as demandas dessa sociedade.


Conhecer alguma coisa era saber a que fim ela se destinava. E os filósofos se entregavam à investigação dos sinais que, de alguma forma, pudessem indicar o sentido de cada uma e de todas as coisas. E é assim que um homem como Kepler dedica toda a sua vida ao estudo da astronomia na firme convicção de que Deus não havia colocado os planetas no céu por acaso. Deus era um grande músico-geômetra, e as regularidades matemáticas dos movimentos dos astros podiam ser decifradas de sorte a revelar a melodia que Ele fazia os planetas cantarem em coro, no firmamento, para o êxtase dos homens (ALVES, 1981, p. 41).
Essa percepção do sagrado fruto do Cristianismo com sua instituição principal a Igreja Católica Apostólica Romana incentiva a leitura e o estudo e a partir do século XIV há uma expansão na oferta de escolas; “o êxito da escola deve-se, em parte, ao papel da Igreja, que tem a obrigação de ensinar: é preciso estudar a Bíblia para chegar a Deus, e as palavras da liturgia não toleram imprecisão. Cabe à Igreja atrair fiéis, que devem conhecer as preces e os preceitos” (BEAUNE, 2004, p. 49). Esse incentivo ao ensino provoca alterações na sociedade medieval que se apropria da escrita para suprir as suas necessidades cotidianas. Com o aumento e o fortalecimento das cidades a educação torna-se uma vantagem para aqueles que dominam a escrita e a escola passa a ser uma escada para a prosperidade do indivíduo, scolae scalae (a escola é uma escada). Esse aumento de escolas provoca uma demanda por mais mestres que são fornecidos pelas Universidades. “É preciso, enfim, atrair um mestre. As regiões economicamente desenvolvidas, as grandes cidades próximas de uma universidade, concentram as vocações para o magistério” (BEAUNE, 2004, p. 49).

Segundo Hélgio Trindade (1999), “a partir do século XII a universidade é inventada e se institucionaliza apoiada no trabalho dos copistas e tradutores, que preservaram grande parte do legado greco-cristão para formar clérigos e magistrados”. No seu surgimento a Universidade adota os mesmos moldes de outra instituição medieval, as corporações de ofício, “em sua fase áurea, esta se organiza através do modelo corporativo (Universitas scholarium et magistrorum), em torno de uma catedral (Alma Mater), abarcando vários domínios do saber, como: teologia, direito romano e canônico e as artes” (TRINDADE, 1999, p. 7).
Analisando a constituição da Universidade na idade média, a Profª. Terezinha de Oliveira vai escrever que:

[...] era necessário o estabelecimento de leis que protegessem a Universidade e assegurassem a sua liberdade, posto que a sociedade percorria outros caminhos e interesses. Contudo, essas leis ou privilégios, como queiram denominar, não impediram que essa Instituição se aproximasse dos interesses da comunidade e, muitas vezes, correspondesse aos seus anseios.
Concomitantemente, também, verificamos a promulgação de leis reais e papais (portanto, governamentais) visando aos interesses imediatos das Universidades. Assim, [...] pretendemos analisar, em linhas gerais, as origens dessa Instituição, considerada como um local novo, próprio do saber, que comungava com os interesses da comunidade e era, legitimamente, reconhecida como um espaço fundamental pelo governo laico e eclesiástico do medievo (OLIVEIRA, 2005).
Ainda que percorresse “outros caminhos e interesses” e fosse “considerada como um local novo, próprio do saber”, a Universidade é filha de seu tempo e os homens que dentro dela havia o são mais ainda, Roger Bacon (1215-1294) da Universidade de Oxford é um frade franciscano; Tomás de Aquino (1225-1274) é o Doctor Angelus (O Doutor Angelical) e sua maior obra é a Suma Teológica. São homens da Universidade, mas também do sagrado. O espaço é novo, as idéias são novas, mas o sagrado também permeia a mente dos intelectuais e esta instituição voltada para a sapiência, contudo se aproxima dos interesses da comunidade e se torna alvo dos poderes seculares e eclesiásticos. A Universidade não é um corpo estranho à sociedade medieval, a sua forma de organização e a sua linguagem são familiares àquele universo.
Jacques Verger, especialista francês em história, cultura e ensino da Idade Média, em sua obra Homens e saber na Idade Média, irá observar que a Universidade Medieval nasce com autonomia:

[...] essas primeiras universidades, para além da diversidade das instituições, tinham em comum serem organismos autônomos de natureza corporativa. Ser autônomo significa ser mestre de seu recrutamento, poder dotar-se de estatuto, poder impor a seus membros o respeito a uma certa disciplina coletiva e a regras de cooperação mútua, ser reconhecido como uma pessoa moral pelas autoridades exteriores, tanto eclesiásticas quanto laicas, poder, enfim, organizar livremente aquilo que era a própria razão de ser da cooperação universitária, quer dizer, o ensino, os programas, a duração dos estudos, as modalidades de exames que sancionavam esses estudos e a colação dos graus que coroavam o êxito nos ditos exames. As universidades eram, em alguma medida, federações de escolas (VERGER, 1999, p. 81-82).
A sua importância vai pouco a pouco se afirmando ao fornecer seus serviços ora aos poderes eclesiásticos, ora aos poderes laicos que constantemente se viam tentando aumentar ou conservar suas áreas de influência. Tanto um como o outro acabavam fortalecendo a Universidade nessa disputa.
Sobre a questão do favorecimento da Universidade pelo poder papal, Jacques Verger escreveu em um artigo que:

[...] papas favoreceram o desenvolvimento rápido das primeiras universidades, ao colocá-las sob sua proteção direta. Em Bolonha, Paris, Oxford, Montpellier, Pádua e Salamanca, eles ajudaram os mestres e estudantes a se subtraírem do controle das autoridades civis e eclesiásticas, para se organizarem em corporações autônomas, senhoras do seu recrutamento, do seu status, da organização do ensino e da colação dos graus.

Em retorno, evidentemente, esperava-se que essas corporações formassem um número suficiente de juristas e teólogos, de que a cristandade necessitava para dar à doutrina e ao direito da Igreja a formulação moderna que lhe permitisse responder eficazmente às aspirações dos contemporâneos, inclusive das camadas importantes da sociedade urbana, e daqueles que viviam em torno dos príncipes (VERGER, 2005, p. 55).
Ora, não só os poderes eclesiásticos “namoravam”, se podemos assim dizer, a Universidade, os poderes laicos também estendiam os seus favores a ela:

No início do século XIII, o papa e os príncipes encaravam essas instituições como importantes pontos de apoio político e cultural. Em função disso, editaram leis e bulas com o objetivo de instituí-las, protegê-las e nelas intervir, tanto no ensino como nas relações entre estudantes e mestres e entre estes e a comunidade.
As principais universidades do século XIII, Paris e Bolonha, foram criadas por essas autoridades. Dois grandes exemplos da influência desses poderes na organização da universidade medieval são a Authentica Habita, de Frederico Barba Roxa, de 1158, e a bula de Gregório IX intitulada Parens scientiarum universitas, de 1231. Ambas foram promulgadas para proteger a vida e os interesses dos estudantes e mestres e para organizar a vida acadêmica (OLIVEIRA, 2007).

Esta era uma instituição nascida no meio da sociedade da época, com valores e percepções próprios daqueles que viviam aquela época, organizada como as corporações de ofício, também num modelo típico da época, participante ativa das mudanças, protegida pelos interesses dos poderes laicos e religiosos, ou seja, para aquele momento ela era uma instituição “sagrada” no sentido amplo da palavra e concomitantemente respeitada.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, Rubens. O que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1980.

BEAUNE, Colette. Escola, a escada para a ascensão social. História Viva. São Paulo: ano I, nº. 5, p. 48-51, março de 2004.

OLIVEIRA, Terezinha. A universidade medieval: uma memória. In: IV Jornada de Estudos Antigos e Medievais, na Universidade Estadual de Maringá, outubro de 2005. Disponível em: . Acesso em 28 maio 2009.

OLIVEIRA, Terezinha. Origem e memória das universidades medievais a preservação de uma instituição educacional. Varia história, v.23 n.37, Belo Horizonte jan./jun. 2007. Disponível em . Acesso em 28 maio 2009.

TRINDADE, Hélgio. Universidade em perspectiva: Sociedade, conhecimento e poder. Revista Brasileira de Educação, n°. 10, Jan/Fev/Mar/Abril 1999. Disponível em Acesso em 28 maio 2009.

VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

VERGER, Jacques. O alvorecer das Universidades. História Viva. São Paulo: ano II, nº. 17, p. 52-59, março de 2005.

domingo, 13 de junho de 2010

A TEOLOGIA CRISTÃ E O SURGIMENTO DA FÍSICA

Eraldo Luis Pagani Gasparini*


O objetivo deste artigo é investigar a existência de uma ligação da Física com a Teologia, em específico a Teologia Cristã. A premissa atual no campo das ciências é que religião, em especial a cristã, e ciências são incompatíveis, antagônicas e que a primeira leva ao atravancamento da última. Seria isto verdadeiro? Será que ciência e religião, razão e fé sempre estiveram em conflitos? A presente pesquisa busca responder essas questões a partir de análise bibliográficas. Os referenciais teóricos adotados para esta investigação foram R. Hooykaas com sua obra “A Religião e o desenvolvimento da Ciência Moderna” e Francis Schaeffer com sua obra “A morte da Razão”.
O método adotado foi a análise bibliográfica de textos de cientistas do século XVI e XVII, bem como de físicos contemporâneos como Stephen Hawking e Marcelo Gleiser.
A Física, enquanto disciplina cientifica, só surgiu no século XVI. Até então a “física era uma filosofia contemplativa sobre a essência (natureza, physis - gr. phýsis) das coisas” . Em princípio, eram chamados de físicos todos aqueles que se dedicavam ao estudo da natureza . Mais tarde, com o desenvolvimento do conhecimento, o campo de atuação subdividiu-se em várias partes, que se tornaram capítulos separados da ciência. Desta maneira, a Astronomia tornou-se a ciência que estuda os corpos celestes, a Biologia a ciência que tem por objeto o estudo dos seres vivos, a Química estuda as transformações das substâncias, e assim por diante. A Física tornou-se a ciência dos fenômenos naturais, do grego physiké que significa “relativa a natureza”. Atualmente essa definição não é mais adequada devido a grande expansão dos conhecimentos por ela abarcados . No dicionário da língua portuguesa Aurélio a Física está definida da seguinte maneira:

Física [Do lat. physica < gr. physiké, fem. de physikós.] Substantivo feminino. 1. Ciência de conteúdo vasto e fronteiras não muito definidas, que investiga as propriedades dos campos, as interações entre os campos de força e os meios materiais, as propriedades e a estrutura dos sistemas materiais, e as leis fundamentais do comportamento dos campos e dos sistemas materiais. Para a Física chegar a este status um processo histórico ocorreu, processo este que nos arremete aos séculos XVI e XVII e à Teologia Cristã. A sua concepção e o seu nascimento se dão em meio às universidades européias ligadas a conventos e igrejas destinadas a formação de clérigos. Mas, como num parto, certas barreiras precisaram ser rompidas para que ela surgisse. Uma das principais foi com a filosofia de Aristóteles (384-322 a.C.). Aristóteles foi um filósofo grego que na antiguidade elaborou um conjunto de leis para explicar o universo físico. No entanto muito de suas conjecturas sobre as leis que regem o universo estavam profundamente equivocadas. Albert Einstein vai expressar da seguinte maneira estes equívocos: "É fato conhecido dos leitores das ficções policiais que uma pista falsa confunde a história e protela a solução. O método de raciocínio ditado pela intuição era falso e conduziu a idéias falsas sobre o movimento que foram conservadas durante séculos. A grande autoridade de Aristóteles em toda a Europa foi, talvez, a razão principal da demorada crença nessa idéia intuitiva". Foi Aristóteles que disse que a Terra estava em repouso, era o centro do universo e que todos os corpos celestes, inclusive o Sol e a Lua, giravam em órbita da mesma e as estrelas estavam fixas no que ele chamava de esfera celeste . Mas por que as suas idéias não eram contestadas? Porque na Idade Média foi desenvolvida a filosofia escolástica que atribuía autoridade incontestável as fontes de conhecimento, entre elas os escritos de Aristóteles. Todas as ciências até ao final da Idade Média estavam restritas aos escritos de Aristóteles e dos filósofos gregos. Não que não houvesse produção científica na época, só que a mesma esbarrava na autoridade inconteste dos escritos clássicos. Um dos primeiros a contestar Aristóteles foi o frade franciscano Roger Bacon (c. 1219-1292) de Oxford, Inglaterra, que escreveu o seguinte: “Se pudesse ditar a ordem das coisas, queimaria todos os livros de Aristóteles, pois seu estudo é uma grande perda de tempo, e só pode causar erro e aumentar nossa ignorância... Parem de ser dominados por dogmas e autoridades, olhem para o mundo!” O que fez então com que a autoridade de Aristóteles fosse contestada? Olhando mais atentamente os textos da tradição grega, alguns teólogos perceberam que a mesma via a natureza, o mundo como um organismo vivo e divino que possuía um caráter inteligível . Ora, para um teólogo cristão isso é idolatria, pois só há um único e verdadeiro Deus. Do ponto de vista teológico cristão a natureza não poderia ser considerada como uma “entidade”. O que é a natureza então? Ela é criação e criatura de Deus. Deus como um artífice criou a natureza, a partir de um plano de Sua mente, dando-lhe um objetivo e finalidade. É essa visão de tradição judaico-cristã que passa a vigorar no meio teológico em relação à natureza: "Uma visão mais acentuadamente bíblica do mundo favoreceu, desde o século XVI, o desenvolvimento da ciência moderna e da sua correspondente concepção do mundo. O modelo do mundo como um organismo foi substituído pelo do mundo como um mecanismo; todo desenvolvimento de Copérnico a Newton pode ser apropriadamente denominado de mecanização do mundo". É essa visão bíblica da natureza, do mundo que fez com que os primeiros cientistas (e teólogos) investigassem os mesmos com um novo olhar; não com um olhar estético de contemplação do belo, ou um olhar de temor diante de uma divindade imprevisível, mas um olhar inquiridor, investigador das obras de Deus como descreveu Francis Schaeffer: "Os primeiros cientistas compartilharam também da perspectiva do Cristianismo na crença de que há um Deus racional, que criou um universo racional e, portanto, o homem, mediante o uso da própria razão, possui a capacidade de descobrir a forma do universo. Estas contribuições de tão alta monta, que nós hodiernamente tomamos por fatos óbvios, deram surto a ciência moderna nos seus primórdios". A teologia cristã permeava todo o pensamento científico dos séculos XVI e XVII, os primeiros cientistas modernos pensavam em fazer ciência no sentido de glorificar e exaltar a Deus, tanto é assim que o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) termina o prefácio de sua obra Historia Naturalis da seguinte maneira: “Possa Deus, o Fundador, Preservador e Renovador do Universo, em Seu amor e compaixão pelos homens, proteger a obra, tanto em sua ascensão para Sua glória, como em sua descida para o bem do Homem, através de Seu único Filho, o Deus-conosco” . Mas uma das questões cruciais no século XVI e XVII é que o próprio pensamento estava se modificando, da escolástica para o empirismo histórico-natural e um dos principais propagadores desse método foi Francis Bacon. Ele defendia que o conhecimento devia ser adquirido da experiência (empirismo) através da coleta sistemática de fatos (histórico) de observação da natureza (natural). O homem devia se apropriar do conhecimento de Deus que está expresso em sua criação e não lançar sobre a mesma o seu raciocínio humano. O homem deveria aprender a “ler” o livro da criação escrito pelo próprio Deus, assim como lia as Escrituras Sagradas, o livro da revelação de Deus. De acordo com Hooykaas, Francis Bacon chegou mesmo a afirmar que quando Cristo disse “Vós errais, por não conhecerdes as Escrituras nem o poder de Deus”, estava se referindo aos dois livros, o das Escrituras e o das criaturas . Como se pode notar a base desse empirismo é a Bíblia. Podemos observar essa base bíblica num texto do Novo Testamento, epístola de Paulo aos Romanos, onde está escrito: "Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas" (Romanos 1:19-20). O que se depreende desse texto? O que um cientista na Europa em pleno século XVI pensava ao lê-lo? Que o homem observando cuidadosamente a natureza, as criaturas, ele pode conhecer os atributos de Deus, o seu eterno poder e sua própria divindade, ou seja, fazer ciência é fazer teologia. E Schaeffer vai escrever que “O Cristianismo era necessário para o começo da ciência moderna pela simples razão de que o Cristianismo criou um clima de pensamento que colocou o homem em posição de investigar a forma do universo” . Os primeiros cientistas da assim chamada “ciência moderna” foram teólogos, é possível perceber nas biografias descritas que alguns deles são apresentados como físico, matemático e teólogo ou cientista, filósofo, matemático e teólogo. Acrescido da sua nacionalidade e da época em que viveu. Entre os vários nomes de físicos que foram teólogos poderíamos citar Nicolau Copérnico, Isaac Newton, Johannes Kepler, Evangelista Torriceli e Blaise Pascal. Para exemplificarmos essa realidade analisaremos partes de trechos de alguns escritos dos cientistas Johannes Kepler, Isaac Newton e Blaise Pascal. Johannes Kepler (1571-1630) dividi com Nicolau Copérnico e Tycho Brahe a paternidade da Astronomia como ciência; foi ele quem elaborou as três leis do movimento dos planetas do sistema solar, que ficaram conhecidas como as Três Leis de Kepler. Ele foi enviado a Universidade Luterana de Tübingen para ser um pastor, tendo feito bacharelado e mestrado em teologia. Contudo lá ele se apaixonou pela matemática e a astronomia e após se formar foi ser professor . Sua obra considerada mais importante, onde as três leis dos movimentos planetários aparecem reunidas, foi Harmonice Mundi (Harmonias do Mundo) publicada em 1618. Analisando essa obra podemos notar a presença da teologia cristã na elaboração da explicação cientifica para a órbita dos planetas do sistema solar.
Na introdução de Harmonice Mundi, ele escreveu “como Deus o Melhor e Maior, que inspirou minha mente, e incitou meu grande desejo, prolongou minha vida e faculdades mentais” ; querendo com isso demonstrar que o feito de ter encontrado o formato elíptico da órbita dos planetas em torno do sol foi por obra divina. Esta descoberta o deixa extasiado a ponto de escrever: “Estou livre para me entregar a loucura sagrada, estou livre para importunar os mortais com a confissão franca de que estou roubando os vasos de ouro dos egípcios, para construir com eles um templo para meu Deus, longe da terra do Egito.” Mais adiante, explicando a proporção das órbitas planetárias, ele vai escrever: “Pois o Criador, que é a própria fonte da geometria e, como escreveu Platão, ‘pratica a geometria eterna’, não se desvia de Seu próprio arquétipo” . Isto tudo está escrito em meio a descrições astronômicas e demonstrações matemáticas.
Isaac Newton (1642-1727), cientista inglês, o pai da física clássica, formulador da Lei da Gravitação Universal, com contribuições na óptica e mecânica, criador do cálculo diferencial e integral, também teve profundo envolvimento com a teologia. Ele escreveu várias obras teológicas, sendo a mais importante, “Observações sobre as Profecias de Daniel e do Apocalipse de São João”. Os últimos vinte anos de sua vida são dedicados a assuntos teológicos. Em sua opinião seus estudos sobre teologia eram mais importantes que seus tratados científicos .
Pode se notar a presença da teologia em sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), onde há um capítulo intitulado Do Sistema do Mundo, em que se lê:

"Este magnífico sistema do sol, planetas e cometas poderia somente proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso. E, se as estrela fixas são os centros de outros sistemas similares, estes, sendo formados pelo mesmo conselho sábio, devem estar todos sujeitos ao domínio de Alguém... Esse Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo, mas como Senhor de tudo; e por causa de seu domínio costuma-se chamá-lo Senhor Deus Pantokrátor, ou Soberano Universal".

A noção de universo para Newton esta necessariamente atrelada a de um Criador, que é o Senhor do Universo, que governa e sujeita o mesmo.
Ele não concebe uma filosofia natural sem Deus. Para ele, a explicação das leis da natureza passa necessariamente por um entendimento de Deus e seus atributos:

"O Deus verdadeiro é um Ser vivente, inteligente e poderoso; e, de suas outras perfeições, que ele é supremo ou o mais perfeito. Ele é eterno e infinito, onipotente e onisciente; isto é, sua duração se estende de eternidade á eternidade; sua presença do infinito ao infinito; ele governa todas as coisas e conhece todas as coisas que são ou podem ser feitas. Ele não é eternidade e infinitude, mas eterno e infinito; ele não é duração ou espaço, mas ele dura e está presente".

Em Optica (Óptica), Newton vai expor a sua teoria atomística do universo e sua explicação do que é um átomo parte do princípio de que Deus formou a matéria a partir deste:

"Parece provável para mim que Deus no começo formou a matéria em partículas movíveis, impenetráveis, duras, volumosas, sólidas, de tais formas e figuras, e com tais propriedades e em tal proporção ao espaço, e mais conduzidas ao fim para o qual ele as formou; e que estas partículas primitivas, sendo sólidas, são incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos compostos delas; mesmo tão duras que nunca se consomem ou se quebram em pedaços; nenhum poder comum sendo capaz de dividir o que Deus, ele próprio, fez na primeira criação".

Para Newton, sem o conhecimento de Deus (teologia) não há uma ciência da natureza (física) sustentável.
Blaise Pascal (1623-1662), cientista francês, desenvolveu estudos em hidrostática e o cálculo das probabilidades, inventor da calculadora (se bem que a mesma só somava e subtraía) deixou a ciência e foi para o convento de Port Royale onde passou a escrever sobre teologia. A sua obra mais famosa “Pensamentos” é uma obra teológica.
Num século marcado pela insurgência do racionalismo, Pascal irá se opor a Descartes quanto as propriedades da razão. Tanto é assim que ele dedica algumas linhas a ele: “Escrever contra os que aprofundam demais as ciências. Descartes”.
Sua frase mais conhecida: “O coração tem razões que a própria razão desconhece” está escrito em sua obra Pensamentos, no Artigo IV - Dos meios de crer, num contexto de contestação aos atributos concedidos por Descartes a razão. No mesmo capítulo encontramos “Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão”; mais adiante temos “A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a percebê-lo” . Para Pascal, até como método o racionalismo tem as suas limitações, porque muitas vezes a natureza se comporta de maneira irracional, a água abaixo do gelo do leito de um rio congelado está a -4 °C e não está em estado sólido.
Contundo quando ele vai defender a fé cristã é que o teólogo dentro do cientista aparece:

"Não apenas conhecemos Deus somente por Jesus Cristo, como ainda conhecemos a nós mesmos somente por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo não sabemos o que é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos.
Assim, sem a Escritura, que tem Jesus Cristo por objeto, nada conhecemos e só vemos obscuridade e confusão na natureza de Deus e na própria natureza".

Para Pascal não há ciência sem Deus e a razão perde o sentido de ser, mas quando o homem se encontra com Deus, através de Jesus Cristo, ele entende a razão de todas as coisas: “Jesus Cristo é o objeto de tudo e o centro para onde tudo converge. Quem o conhece, conhece a razão de todas as coisas” . A física deve convergir para a fé.
O que notamos através da análise dos textos desses cientistas dos séculos XVI e XVII? Que a concepção deles sobre ciência está profundamente ligada a sua fé e desta maneira eles desenvolvem uma nova disciplina: a Física. Isso é notado pelos físicos contemporâneos Stephen Hawking e o brasileiro Marcelo Gleiser, que dedicam capítulos em suas obras “Os gênios da ciência: sobre os ombros de gigantes” e “A dança do Universo: dos mitos de Criação ao Big Bang”, respectivamente, para tratar desse assunto. Dessa maneira percebemos que a Física nasce filha da matemática, da lógica, da tradição grega e da teologia, da tradição judaico-cristã. Essa relação mostra que nem sempre houve desacordos entre ciência e religião, muito pelo contrário, os textos analisados demonstram que só a partir de uma boa relação entre as duas é que uma nova disciplina científica pode surgir.


* Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Coxim e aluno do curso de Especialização em História das Religiões pela Universidade Estadual de Maringá (2008-2010).



REFERÊNCIAS:
AMALDI, Ugo. Imagens da Física: As idéias e as experiências, do pêndulo aos quarks. São Paulo: Scipione, 1995.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rev. e Atual. 2. ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
COLEÇÃO OS PENSADORES: NEWTON. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
COLEÇÃO OS PENSADORES: PASCAL. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
EINSTEIN, Albert; INFELD, Leopold. A Evolução da Física. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. NOVO AURÉLIO SÉCULO XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
GLEISER, Marcelo. A dança do Universo: dos mitos de Criação ao Big Bang. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
HAWKING, Stephen. Os gênios da ciência: sobre os ombros de gigantes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Tradução: Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Editora UnB, 1988.
SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. 8. ed. São Paulo: ABU Editora, 2001.